Anúncios causaram choque e repercutiram, mas profissionais do setor não estranharam o fiasco. Ao g1, eles contam sobre suspeita de que uma bolha estava prestes a estourar.
Por Marina Lourenço, g1
Desde o dia 15 de maio, só se fala em uma coisa na indústria brasileira do showbiz: os cancelamentos repentinos das turnês de Ivete Sangalo e Ludmilla. Os eventos eram produzidos pela mesma empresa: 30e.
Embora os anúncios tenham causado choque e repercutido com bastante intensidade, muitos trabalhadores do setor não estranharam. Pelo contrário. Já suspeitavam que, uma hora outra, isso aconteceria com algum dos megaeventos da produtora.
É o que afirma a maioria dos seis profissionais do mercado ouvidos pelo g1. Assista ao vídeo acima.
A ambição da 30e
Fundada em 2021 por Pepeu Correa, a 30e surgiu a partir de um fundo milionário, com a proposta de realizar turnês grandiosas e festivais de música — MITA, Ultra Brasil, Knotfest Brasil e GPWeek.
Enquanto brasileiros ainda se preparavam para voltar às ruas com o afrouxamento da quarentena, a 30e já planejava um cardápio farto de shows para o retorno à pista. Os eventos eram vendidos sob o pretexto de agradar a uma multidão sedenta por êxtase pós-pandêmico.
A ideia não foi somente da 30e, claro. O setor inteiro tentava se reerguer organizando apresentações do tipo. O selo de Pepeu Correa, porém, foi o que mais se destacou.
Mesmo competindo com gigantes do mercado como LiveNation e Time For Fun, a produtora — ainda recém-nascida — rapidamente emplacou shows arrojados e bem-sucedidos.
Em nota enviada ao g1, a assessoria da empresa afirma que a 30e faz eventos de todas as dimensões, assim como trabalha com artistas nacionais e internacionais de todos os tamanhos, citando como exemplos seus trabalhos com o beatle Paul McCartney e o jovem australiano Ruel.
No ano passado, a 30e fechou um acordo com Allianz Parque, estádio de São Paulo que comporta cerca de 50 mil pessoas.
A parceria prioriza a 30e no aluguel do espaço — para a realização de shows. Alguns produtores dizem que, em troca, a empresa deve cumprir uma meta de apresentações estipulada pelo Allianz. Questionada, a assessoria do estádio nega a existência da condição quantitativa.
Colocou ali nomes como Titãs, Jão, NXZero, The Killers e Slipknot. Também marcou para os próximos meses shows de Natiruts, Forfun e Ney Matogrosso (os ingressos já estão à venda).
Mas há quem diga que, em alguns casos, a conta não fecha.
Tanto Ivete quanto Ludmilla prometiam apresentações no estilo de megaespetáculo. Ou seja, shows com direito a balé, banda, efeitos visuais, troca de figurino e cenografia arrojada. Tudo acompanhado por plateias enormes — compostas, aliás, por quem pagaria entre R$ 100 e quase R$ 700 (no caso de A festa, de Ivete) e R$ 95 e quase R$ 500 (no caso de Ludmilla in the house, de Lud).
Nenhuma das partes envolvidas especificou o motivo dos cancelamentos das turnês. Mesmo assim, é nítida a existência de um desencontro entre a produtora e as cantoras.
Teria sido a partir desse papo que as artistas decidiram dar tchau à empresa. Em 15 de maio, anunciaram (praticamente ao mesmo tempo) a suspensão de seus shows.
Horas após os comunicados das artistas, a 30e publicou uma nota na qual falou que não houve nenhuma negociação anterior à decisão de Ludmilla.
O flop de Ludmilla in the house
A turnê Numanice, de Ludmilla, é um caso de sucesso. Mas, diferentemente dessa outra que foi cancelada, é uma label party [festa itinerante]. As pessoas vão com a ideia de ver amigos, paquerar, beber, enfim. É diferente de um show de estádio, que é mais careta, porque aí vão exclusivamente para ver o artista", diz um produtor.
A label Numanice funciona melhor do que a Ludmilla. A Tardezinha [do Thiaguinho] funciona melhor do que o Thiaguinho. Tudo o que é mais exclusivo tem mais chance de vender."
Com 19 shows marcados para ocorrer em estádios e arenas do país, a turnê da carioca tinha vendido 27 mil ingressos em São Paulo, 8.500 no Rio de Janeiro e entorno de 350 nos outros municípios, afirma ele.
Se comparada a capacidade máxima do Allianz (entorno de 50 mil), os 27 mil ingressos vendidos em São Paulo não é um número que justifique uma necessidade pelo estádio. Que dirá, então, a baixa quantidade de venda nas outras cidades, onde também seriam realizados shows em áreas enormes.
A capital paulista — e parte do Sudeste — tem shows com ingressos mais caros em relação ao restante do país.
O analista diz que, no entanto, a diferenciação regional dos valores cobrados pelas turnês das cantoras não estavam de acordo com o real poder de compra de cada lugar.
O flop de Ivete
Ivete também não estava vendendo bem. Quando a 30e comentou o cancelamento de sua turnê, falou em "questões de demanda". O termo é amplo. Pode significar conflitos logísticos, imbróglios burocráticos, desavenças entre empresas e por aí vai.
Mas, segundo os profissionais ouvidos pela reportagem, “questões de demanda” se refere mesmo à baixa venda de ingressos.
Ivete faria 30 shows em 30 cidades (somente em estádios e áreas de grande público), num percurso de vaivém de regiões.
Por exemplo, em 02 de novembro, a cantora se apresentaria no interior de São Paulo. Na semana seguinte, desceria para o Paraná, e no dia 16, ao Rio Grande do Sul. Sete dias depois, voltaria ao Paraná e, no fim do mês, para São Paulo. Em seguida, iria à Minas Gerais e, novamente, a São Paulo.
"A culpa disso tudo é só da 30e? Claro que não. A culpa é também de quem tava sentado naquelas mesas [representando Ivete e Ludmilla em meio ao fechamento dos contratos]."
Estádio não é para qualquer um
É inegável que "Titãs Encontro" tenha feito um sucesso estrondoso. Com 46 shows, a turnê vendeu mais de 600 mil ingressos.
Só no Allianz Parque foram seis apresentações, com a casa lotada.
Para analistas, a principal razão está no ineditismo do evento. Era a oportunidade de ver (e pela última vez) uma apresentação dos músicos de uma das bandas mais lendárias do rock brasileiro. E com a formação original. É tentador para além dos fãs.
O reencontro do NX Zero, grupo que explodiu nos anos 2000 com um som pop punk banhado na estética emo, também é um caso bem-sucedido no portfólio da produtora.
Mas uma experiência positiva não é, necessariamente, promissora. Tomar como base o sucesso de um evento para conduzir outro da mesma maneira pode ser um tiro no pé, já que cada artista e banda tem suas especificidades.
"A 30e tá colocando muito artista em estádio sem necessidade. Evanescence no Allianz Parque? Evanescence não é banda de estádio. Eles anunciaram que foram 40 mil pessoas no show, mas entraram quase 26 mil. Dava para fazer mais datas num espaço menor", afirma um analista.